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Olhos que condenam

Acabei de assistir uma série muito interessante na Netflix, que aliás, principalmente para quem tem filho adolescente , como eu, deveria ser uma obrigatoriedade pedir que assistam, pois muitos perdem tempo vendo idiotices na netflix e o conteúdo dessa serie mostra como a mídia nos empurra em direcão as sua convicções, muito parecido com o que vivemos hoje no Brasil.
E muito realista para tempos sombrios que vivemos.
Cinco meninos negros, um com ascendência latina, que finalmente tiveram a reparação devida, através dessa série, que não veio do estado de Nova York, que nunca se desculpou apostando nos panos quentes de uma indenização de 40 milhões de dólares. Como se fosse suficiente para devolver a dignidade. A perda para sempre da infância de quem foi tratado como cidadão de segunda classe por exercer o direito de ir e vir.

“Olhos que Condenam” me remete a todo sofrimento dos negros que muitos não aceitam, acham que preconceito não existe e que acabou a escravidão e tudo certo pro negro. Mas, a coisa não é tão coloridinha quanto parece, o preconceito é um demônio enrustido, que ao ser provocado vem com a fúria de toda uma história.
Vamos ao caso Real:
Era noite de primavera de 19 de abril de 1989. Um grupo de cinco adolescentes, em uma cidade cosmopolita, resolveram acompanhar um grupo em um rolê no Central Park, em Manhattan. Na mesma noite, Trisha Meili, executiva branca de 28 anos, foi brutalmente agredida e estuprada enquanto corria ouvindo música em seu walkman. Não citei ela ser branca como se ser branca fosse uma justificativa, mas, ela ser branca foi a estratégia de acusação. Fotografias de roupas manchadas de sangue, dias de internação, perda de olfato e uma recuperação que durou meses. Trisha foi vítima de uma violência imperdoável. No entanto, Nova York, insuflada pelo racismo que habita o coração de muitos brancos norte-americanos, incluindo os formadores de opinião, elegeu o grupo de negros, ou a ‘matilha de arruaceiros’, como classificou o New York Daily News, como algozes.
Os policiais prenderam os cinco meninos. Todos negros. Todos moradores do Harlem. Adolescentes entre 14 e 16 anos, que levavam vidas tão normais quanto a nossa. Até aqui. Se tornaram ‘merdinhas’e ‘delinquentes’ em todos os tablóides daquele ano.
“Matilha de arruaceiros”, classificou a mídia antes do veredito
A promotoria nos Estados Unidos é muito vaidosa e centralizadora. Nesse caso, os meninos pegaram uma daquelas em Ascenção com dedo em rister e pronta para levar as extremas medidas para condenar esses 5 meninos.
Branca, poderosa, cabelos louros. Linda Fairstein era símbolo de uma Nova York que retoma o flerte com o abismo desde a ascensão de Donald Trump. O ex-apresentador bon vivant apostou na discriminação escondida no slogan ‘make America great again’ (‘faça a América grande de novo’) para garantir o comando da Casa Branca. Trump sabia que tal máxima não inclui negros e latinos. Sempre soube o que era, na verdade, esse retorno ao passado.
Linda apostou no racismo para condenar os cinco rapazes injustamente
O agora presidente dos Estados Unidos foi bem ativo no acirramento dos ânimos naquele abril de 1989. Trump pagou um anúncio em jornal de 80 mil dólares pedindo o retorno da pena de morte como punição aos cinco rapazes. Reação típica de um figura que alimenta o preconceito e a opressão.
– O racismo será premiado: William Waack vai comandar a CNN Brasil
“Claro que odeio essas pessoas. Vamos todos odiá-los. Quero que a sociedade os odeie. Porque, talvez, ódio seja o que precisamos para mudar as coisas”, disse o magnata de Nova York.
“Restituam a pena de morte!”, bradou o agora presidente dos EUA
Voltemos à Linda. A então chefe da unidade de crimes sexuais do escritório do Procurador Distrital de Manhattan entre 1976 e 2002 ficou à frente do caso de estupro. Desde o primeiro momento, como bem mostra Ava (diretora da serie) , Fairstein decidiu pela condenação dos adolescentes. Bastava provar. Mas foi preciso achar meios legais para não deixar as motivações raciais tão evidentes. Para isso, Linda autorizou diversos abusos: tortura, interrogatórios de 12 horas, coação e agressões. O ápice foi um discurso orquestrado.
“E pensar que iríamos entregar estes animais para a vara da família”, comentou Fairstein em abril de 1989.
A representação do racismo: Fairstein e Elizabeth Lederer
A aposta na desumanização
Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana e Korey Wise não se conheciam, estavam apenas pedalando em grupo, mas os investigadores pensaram uma narrativa que os colocaram uns contra os outros. Os jovens precisavam confessar o crime para supostamente irem para casa.
Confessaram, permaneceram presos e Linda tinha em mãos o que buscava para bater o martelo. Kevin, um jovem de 14 anos que tocava trompete, estava diante dos truculentos policiais de Nova York se defendendo de um estupro. O garoto sequer tinha noção do significado deste tipo de violência sexual.
A demonstração da impossibilidade da plena existência do negro no sistema racial atual se dá com Antron McCray, fã de beisebol, com uma camiseta Michael Jordan e com o sonho de se tornar um atleta profissional. Yusef Salaam, muçulmano, de família estruturada e mãe protetora. Aliás, ao chegar na delegacia, Sharon questiona a atitude de Linda, que ouviu o rapaz sem a presença de um advogado ou responsável. Mas, essa foi a única mãe que ainda conseguiu tirar o filho no momento dele ser obrigado a depôr.
Korey Wise comia frango frito com a namorada quando decide ir com os amigos ao Central Park. O garoto de 16 anos está na delegacia para ter certeza de que o amigo Yusef não se meta em confusão. Wise acaba escolhido por Linda como a peça final da farsa.
A promotora Elizabeth Lederer tem a missão de condenar os garotos entre 14 e 16 anos. Embora ciente da fragilidade das provas e de confissões fabricadas, ela mergulha de cabeça na narrativa da construção da imagem violenta do homem negro.
O velho filme se repete
O raciocínio de Linda e Elizabeth é comum em países escravocratas como os Estados Unidos e o Brasil. Durante a escravidão, o homem negro teve sua masculinidade anulada. O fenômeno começa antes dos navios negreiros. Estes homens foram humilhados com a chegada dos colonizadores à África, que os faziam assistir suas mulheres e filhas sendo violentadas e estupradas. Escravizados, além de açoitados e humilhados pelos senhores de engenho serviam, muitas vezes, de objeto sexual para sinhazinhas.
A História de mostrar o homem negro como um monstro não é nenhuma novidade no filme
‘O Nascimento de uma Nação’ em 1915
A cena emblemática da obra-prima do racismo acontece quando ele persegue Flora Cameron. A jovem inocente corre pela floresta de uma figura animal. Gus tem o corpo pintado com tinta marrom – precursão do black face – olhos arregalados e uma expressão animalesca. Flora está aterrorizada com a ameaça negra e prefere se jogar de um penhasco a ser tocada pelo homem. Eis que à beira de um precipício, a menina é resgatada por quem???? Pela Ku Klux Klan, que caça e lincha Gus até a morte.
Fairstein, Lederer e a Justiça dos Estados Unidos apostaram na bestialização do homem negro como trunfo para a condenação. Bastava contar com a força da imprensa, que fez seu trabalho com maestria.
Antron, Kevin, Yusef,Raymond e Korey passaram de cinco jovens comuns para criminosos sexuais. Tal como Gus em ‘O Nascimento de uma Nação’. A crueldade e o racismo de Nova York deixaram sequelas eternas na vida dos jovens.
Raymond, depois de passar quatro anos na prisão, se envolveu com tráfico de drogas. Ficha suja, não conseguia emprego. O adolescente boa pinta morreu durante o julgamento injusto. Os sonhos também. Foi preso novamente.
Korey, com 16 anos, foi levado para uma prisão de adultos. Passou 13 anos no cárcere. Lá, foi espancado por outros presos, taxado de estuprador e chantageado por policiais. O sistema é foda. Todos sabem o que acontecem com estrupadores na cadeia não é mesmo?
korey, Passou anos tendo alucinações dentro de uma solitária. Sonhava com passeios ao lado da namorada parceria de frango frito no Harlem. Os dois andavam livres pelo parque de diversões em Coney Island. Trocaram o primeiro beijo, tomavam sorvete e sorriam. Sonhos e humanidade arrancadas por Linda e sua turma.
A injustiça (ou crime quase perfeito?) só chegou ao fim em 2002. Matias Reyes, estuprador em série que cumpria pena de 40 anos, confessou o crime contra Trisha Meilli. O DNA confirmou.
Os cinco estavam livres. Mas e suas vidas? Mudaram para sempre. Nenhum deles recebeu pedido de perdão do Estado de Nova York, de Linda ou Elizabeth. Pelo contrário. Donald Trump chegou a chamar de “lixo” um documentário sobre o caso. O bilionário Michael Bloomberg disse enquanto prefeito que a cidade de Nova York “agiu de boa fé”. O político lutou por anos contra pedido de indenização de 250 milhões de dólares feito pelos agora homens.
A injustiça torna-se ainda maior quando sabemos que NY foi condenada a pagar 1 milhão de dólares a cada um deles por ano preso, mas, até hoje, não receberam.
O sucessor Bill de Blasio afirmou que trabalharia para corrigir uma “grande injustiça”. Eventualmente chegaram ao acordo de 40 milhões de dólares de indenização.
Dos cinco, apenas Korey Wise mora em Nova York. Hoje com 46 anos, ele se tornou advogado pela reforma do sistema penitenciário norte-americano. Wise, que passou 12 anos preso, doou 190 mil dólares ao Innocence Project, da Universidade do Colorado.
“Você pode perdoar, mas não vai esquecer. Você não pode esquecer o que perdeu. Nenhum dinheiro pode reviver o tempo arrancado de você”, declarou em entrevista de 2012.
O Korey nem estava no parque, foi apenas acompanhar o amigo até a delegacia e o prenderam também. Ele foi o que ficou mais tempo preso. Ficou 13 anos e em prisão para adultos.
Korey mal sabia ler e escrever e foi obrigado a assinar uma confissão em troca de ir para casa.
Yusef Salaam tem 45 anos e ficou mais de seis anos na prisão. Atualmente, mora com a esposa e os 10 filhos na Geórgia. Ele se tornou um escritor, poeta e advogado pela reforma do sistema carcerário. Em 2016, recebeu das mãos do presidente Barack Obama um prêmio em reconhecimento ao seu trabalho social.
Raymond Santana, de 44 anos, permaneceu preso por 10 anos. Ele também mora na Geórgia com sua filha adolescente. Em 2018, lançou a própria marca de roupas, a Park Madison NYC. Foi um tweet de Raymond que inspirou Ava Duvernay a embarcar em “Olhos que Condenam”.
“O filme é chocante e olhar e imaginar que o que esses meninos passaram poderia ter sido com nossos meninos, dói ainda mais o coração"

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