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Cristina

Para quem gosta de ler ... (É de arrepiar)

Cristina estava no quintal, sentada bem próxima ao velho imbuzeiro que sempre sombreava seu espaço escolhido para brincar.

Sua mãe conversava no portão de casa com um senhor que ela achava familiar, mas não se lembrava onde o tinha visto. E estranhou quando o homem contou as três notas de R$5,00, amassadas do fundo do bolso, e deu à sua mãe, que apressou-se em guardar no cantinho do lenço da cabeça.

Cristina tinha apenas 12 anos.

A mãe entrou apressada, enquanto o homem do portão olhava a menina brincando.

Vinda do interior do casebre sem iluminação, com uma pequena trocha nas mãos, gritou Cristina da soleira da porta.

- Venha, Cristina, chegou a sua hora.

Foi quando o alarme no coração de Cristina disparou. Já havia visto aquela cena antes. Aquele mesmo homem já esteve ali naquele portão, quando sua irmã Lindalva havia ido embora daquela mesma forma, há dois anos. Sua lembrança só voltou em forma de convite para seu enterro, de morte após parto prematuro, sem recursos, em uma cidade do interior.

Cristina sabia que sua mãe estava à procura de um lugar para ela trabalhar, uma casa de família ou, quem sabe, uma venda? Cristina era prendada, já sabia fazer comida e tinha boa saúde. Mas não achava que depois do acontecido com Lindala sua mãe iria levá-la para o mesmo destino! Ser vendida para aquele homem que levava as meninas para trabalharem em imundos Cabarés nas cidades vizinhas, já conhecido no povoado.

Seu nome era temido, principalmente entre as meninas que começavam a tomar corpo de mulher e eram abordadas com ofertas de dinheiro. As famílias mais pobres recebiam no máximo 20 reais por menina. Para essas famílias, somados à economia de ter uma boca a menos para dividir a panela, já estava bom.

Cristina não teve nenhuma reação. Não esbravejou, não xingou, não chorou; simplesmente aceitou sua sina.

Sr. Garcia esperava na velha caminhonete em companhia de outra menina da cidade. Seu nome era Maria. Parecia mais velha que Cristina, mas depois tornaram-se amigas e Cristina descobriu que ela tinha apenas 10 anos de idade.

Foram entregues a uma senhora gorda, de seios fartos e roupas indecentes. Cristina nunca havia visto uma mulher de maquiagem e achou a senhora gorda bonita, bem diferente de sua mãe, que andava pele e osso.

Foram para um quarto onde havia cerca de 20 meninas. Algumas já estavam lá há tempo suficiente para estarem velhas para o serviço e estavam incumbidas de apenas ensinar a labuta às mais jovens.

- Quando o cliente chegar, sorriam, pois os que são bem agradados pagam mais.

Cristina ouvia a tudo com atenção de quem não tinha escolhas.

- Aqui damos 1 camisinha por noite. É só lavar e colocar no outro cliente. Se não lavar direito e pegar menino, o problema vai ser de vocês. O hospital mais próximo fica a 500 km, e vão ter que pegar carona sozinhas. Se pegarem doença, não trabalham mais. O Sr. Garcia abandona lá na caatinga e corta a língua no meio, para ficar como a serpente, para não espalharem a notícia que em nosso cabaré tem mulher cheia de AIDS.

O discurso, experiente e revoltante, começou a mexer com Cristina. Como poderiam tantas mulheres juntas, viverem daquela forma? Por que não fugiam com o dinheiro que ganhavam?

A resposta veio na segunda parte do discurso.

- O programa custa R$20,00. R$15,00 é da casa e R$5,00 de vocês. Cada refeição custa R$1,00. Vocês podem fazer quantas quiserem por dia. O pão com leite de manhã é cortesia da casa. Temos 5 camas e oito redes. O programa na rede é mais barato, e pode fazer fila. No quarto, não pode fazer fila.

A noite começou o movimento no lugar: motos, cavalos, caminhão. Vinha homem de tudo que é lado e de tudo que é jeito. Ela e Maria eram as atrações da noite.

Zuleika, a cafetina gorda, veio dar as últimas instruções às duas no quarto.

- Beijar fica a critério de vocês. O pagamento é feito no final de semana. Como são virgens, vamos fechar o programa com os que sabemos serem bem dotados. Assim, é uma dor só.

E assim, Cristina caiu rumo ao abismo aparentemente sem fim da Prostituição.

No final da primeira semana, aguardou o dia amanhecer, quando todas estavam dormindo, cansadas da noite de movimento, Cristina foi chamar Maria.

- Maria, vamos fugir.

Maria, sonolenta, mas também inconformada com sua situação, levantou-se rápido. Aproveitaram a distração do vigia que preparava o café na cozinha e saíram pelos fundos da casa.

Saíram correndo em direção ao único posto da cidade. Precisavam esperar um pouco, pois sabiam que ali tinha gente do Sr. Garcia, que ficava de tocaia para as meninas que faziam o programa nas boleias. Esperaram na outra esquina e pediram carona quando viram um caminhão se aproximando.

O caminhoneiro parou. Olhou as duas meninas na esquina e decidiu levá-las.

- Olha meninas, sei bem de onde estão vindo, pois menina largada aqui nesta região é o que mais tem. Mas estou indo para a Bahia e sei que vocês não devem estar nem com documentos. Então, vou levar vocês somente até Feira de Santana, porque tenho conhecidos na polícia desta região e sei que não terei problemas. Depois vocês seguem sozinhas.

Assim começou a luta das duas meninas por sobrevivência.

Iam parando de cidade em cidade, pedindo comida, dinheiro, serviço, carona para tentarem sobreviver.

Na semana que precedia o Natal, estavam sem comer há dois dias. Já estavam no estado de Minas Gerais. Bateram em um caminhão bem moderno para tentar vender o corpo em troca de alimentos e carona para São Paulo. Uma menina que deveria ter cerca de 8 anos estava na boleia. As meninas assustaram-se ao vê-la, ali, sozinha, naquela hora. A menina apontou para o hotel próximo e disse que seu pai, que se chamava Roberto, estava lá e que poderiam procurar por ele no dia seguinte, que ele poderia ajudá-las.

As meninas perceberam que o pai deveria estar com alguma mulher e tinha deixado a menina sozinha. Mesmo com a irresponsabilidade do homem, viram uma possibilidade de conseguir ajuda; pelo menos, não a estava prostituindo ou vendendo-a.

A menina deu a Cristina e Maria um pacote de biscoitos que estava no compartimento do caminhão e disse:

- Podem comer. Foi feito pela minha avó. Ela vai adorar conhecer vocês.

Perguntaram-lhe o nome:

- Mariana. - ela respondeu.

Despediram-se. Cristina e Maria prometeram voltar.

Antes de se afastarem da visão do caminhão, Mariana gritou da janela.

- Se vierem e eu não estiver aqui, avise ao papai que sabemos que foi o motorista da carreta cinza. Ele vai entender.

Às 6h já estavam de pé, ao lado do caminhão, esperando o Sr. Roberto para confirmar a bondade dita na noite anterior por sua filha.

O Sr. Roberto se aproximou do caminhão, já com cara de poucos amigos. Era um homem alto, forte, de cabelos grisalhos, com cerca de 40 anos de idade.

As duas esperavam na porta do caminhão. O homem, sem nenhum rodeio, começou a expulsá-las.

- Podem ir saindo. Não tenho dinheiro. Onde está o pai de vocês, duas meninas na rua a esta hora?

Saiu abrindo a porta, quase atropelando as duas com seu corpão e batendo a porta violentamente.

Maria gritou:

- Seu sem educação. Foi sua filha que disse que o senhor iria nos ajudar.

O homem abriu o vidro do caminhão e disse:

- Esta mentira comigo não cola. Não tenho filha.

As meninas se entreolharam sem compreender.

- Se não tem filha, quem é a menina que dorme na boleia?

Sr. Roberto respondeu:

- Além de tudo, gostam de uma pinga, né? Considerando que este papo é de pessoa embriagada.

- Não, moço. A gente não bebe não. Foi sua filha sim, que estava aqui ontem à noite. O nome dela é Mariana; nos disse que seu nome era Roberto e que o senhor poderia nos ajudar. Até nos deu este pacote de biscoito, feito por sua mãe. - Maria mostrou o pacote vazio de biscoito que trazia na sacola e provava o encontro.

O homem abriu a porta do caminhão e caiu de joelhos no chão, chorando sofregamente.

- Meu Deus, que história é esta?

Maria contou toda a história ao homem; falou que achou estranho a filha estar ali sozinha e que ela tinha um sinal preto redondo em uma das bochechas.

Ele teve que dar certeza:

- Realmente era ela. O que mais ela disse?

Cristina lembrou-se das últimas palavras de Mariana.

- Não sei se tem algum significado para o senhor, mas ela nos disse para te avisar que elas sabem que foi o motorista da carreta cinza.

O homem, nesse momento desabou. Abraçou as meninas e disse que as levaria para a casa da mãe dele, onde estariam seguras e nunca mais passariam necessidade.

No trajeto até a casa no interior de São Paulo, o homem foi em silêncio.

Chegou na casa grande, toda avarandada, cheia de árvores no quintal e deixou as meninas dentro do caminhão.

Logo em seguida, uma senhora com cerca de 60 anos veio carinhosamente receber as meninas. Levou-as para a cozinha para comer um prato cheinho de biscoitos e um copo de leite, pois deviam estar muito cansadas da viagem.

Viram uma linda foto do Sr. Roberto com Mariana e a mãe na parede e lembraram prontamente da menina com o marcante sinal no rosto.

- Onde está a Mariana? - indagou Maria. - Desde a noite de ontem não a vimos mais. Achávamos que iria viajar com o Sr. Roberto, mas não a vimos e ficamos sem graça de perguntar o que não era de nossa conta. Ela viajou com a mãe em outro caminhão? Foi isso?

Do rosto de Dona Izabel, caíram lágrimas.

Cristina perguntou:

- Por que está chorando? Está triste? Fizemos algo errado? Se não nos quiser, podemos ir embora, sabemos da despesa de duas meninas.

Dona Izabel, com voz embargada, responde.

- Não, queridas. Estas lágrimas são de alegria, misturadas com saudade. Mariana e sua mãe morreram há 2 anos, em um acidente de caminhão na estrada. Enquanto as duas dormiam, uma carreta cinza entrou sem controle na contramão, acertando em cheio o caminhão de Roberto, que despencou em um desfiladeiro, onde as duas morreram. Roberto há dois anos não tinha paz, acreditando que as duas, no momento de morte, achavam que a culpa tinha sido dele, que tivesse dormido ao volante. Aquelas palavras, com certeza, não podiam ter vindo de outra criança sem ser a doce Mariana. Isso foi para Roberto, além de sua libertação de culpa, a certeza que Mariana queria que tomássemos conta de vocês.

Os quatro abraçaram-se na cozinha fria, mas quente de emoções e da certeza que, de alguma forma, o destino os havia unido em momentos de tristeza diferentes, mas na tal encruzilhada da vida.

Vinte anos se passaram. Cristina é Professora. Maria é Analista de Sistemas. Hoje, Roberto se prepara para conduzir, sua filhar Cristina até o altar.

Nesta história, ao contrário de tantas outras, foi a Sorte que sorriu!

Texto de Izabelle Valladares - Livro As Mulheres que habitam em mim - Edição 2016

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